RAUL BRANDÃO

(12/03/1867 – 05/12/1930)

Autoria: Cecília Barreira; Teresa Lousa

Horizonte geracional

GERAÇÃO DE 1890

País

Portugal

Data e local de nascimento

Foz do Douro, 12 de Março de 1867

Formação e acção

Descendente de pescadores, o mar é a sua maior temática. Completou os primeiros estudos no Colégio São Carlos. Em 1891, após o secundário, ingressa no Curso Superior de Letras, onde como ouvinte permanece por pouco tempo e depois matricula se na Escola do Exército.

Actividade desenvolvida

Mantém sempre uma atividade literária regular. Exerce colaborações em diversas revistas como: O Micróbio (1894-1895), Brasil-Portugal (1899-1914), Revista Nova (1901-1902) ou Serões (1901-1911).

Em 1896, em Guimarães, onde foi colocado em serviço militar, conhece Maria Angelina de Araújo Abreu, com quem se casa em 1897. Em Guimarães assenta arraiais, na famosa Casa do Alto, nos arredores da cidade, deslocando se a Lisboa múltiplas vezes. Em 1912 reforma se no posto de capitão e reinicia uma extensa obra literária de uma qualidade ímpar.

O teatro de Brandão também é particularmente fecundo. Jesus Cristo em Lisboa, em colaboração com Teixeira de Pascoaes (1927) ombreia com o teatro de Valle- Inclán em Los Cuernos de Don Friolera (1921), e O Gebo e a Sombra (1923). Peças que apelavam à mudança, percursoras do teatro de vanguarda.

Escritor prolixo vagueou na ficção, no teatro, nos livros de memória, nos jornais e movimentos literários, conviveu, na juventude, com Nobre, privou com Pascoaes e Aquilino, Nemésio ou Rodrigues Miguéis.

Data e local de falecimento

5 de Dezembro de 1930, Lisboa

Lema e linha filosófica

Apesar de influenciado pelo decadentismo e simbolismo parisiense, algo frívolo, como outros da sua geração, Brandão foi evoluindo para uma estética de forte responsabilização ética e uma verdadeira obsessão com as questões sociais e morais. O seu estilo fin-de-siécle está fortemente patente na sua apetência para um certo catastrofismo e sentido de desespero e angústia, que quase pressente as categorias do existencialismo.

Linha filosófica e caracterização geral da obra

A sua principal obra, Húmus (1917), é toda ela um hino filosófico sobre a existência humana. Um grito existencial e um devaneio poético-filosófico que se inicia assim:

Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste. (…) As paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva, o da morte, que tem diante de si o tempo ilimitado para roer (…). [1]

Aliás, segundo os especialistas, há a obra de Brandão toda ela configurada na geração que antecedeu Pessoa (este era 21 anos mais jovem e nunca gostou de Brandão), a geração de 90 de Nobre e Pessanha, e há o grito filosófico de Húmus, de 1917, o qual surpreende muitos críticos e estudiosos porque antecipa Pessoa, Herberto Hélder, Gabriela Llansol, Vergílio Ferreira e ainda se compagina no expressionismo artístico alemão e nórdico. Pedro Eiras e Luís Mourão, grandes estudiosos deste escritor, alertam para estes relacionamentos literários e para a indiferença de Pessoa em relação a Brandão. Aparentemente, Pessoa e Brandão desconhecem-se. Mas claro que se leram um ao outro.

Húmus poderá ser considerado modernista? Sem dúvida que sim. Romance? Não se sabe. Talvez “um longo poema em prosa”, como assinala Mourão.

Sem dúvida que Brandão apresenta influências de Dostoievski, sobretudo em Os Possessos, mas vai muito mais longe na sua modernidade transmitindo um discurso envolvente e desconcertante:

Desde que te vi- vi o universo. Compreendi tudo. Compreendi que não tinha vivido, e que toda a minha existência tinha sido fictícia que mais-valia um minuto na vida que cem anos de vida. Que só há uma hora na existência e que é preciso aproveitá-la. Que tudo é simulacro e só tu és a verdade. E apercebi o universo como força e destino a tal profundidade, que nesse rápido segundo passou por mim numa rajada todo o turbilhão da vida, com as suas vozes, os seus mistérios e toda a sua grandeza feroz. Vi tudo. Senti tudo. Bastou ver-te. Portanto não tenho dúvidas nem remorsos. Ao contrário estou calmo, ao contrário estou decidido [2]

E, em torno da ideia de Deus, veja se esta passagem extraordinária:

Que é Deus agora? Deus é tudo e nada. É uma força. Deus é uma lei inexorável. Mas então tu que podes tudo-tu não podes nada. És uma lei- e hás-de cumprir essa lei. És um destino e não podes dar um passo fora desse destino. Não vês, não ouves, não sentes. Eu sou uma insignificância e valho mais do que tu. Porque eu grito, eu sofro, eu atrevo-me. Amanhã quebro o meu destino. Tenho uma consciência. Sou ilógico e absurdo. Debato-me. E tu, Deus, não passas duma força cega e estúpida. Não me serves de nada (…). Um Deus-força, um Deus que não se comove com os meus gritos nem as minhas súplicas, não me interessa. Um Deus que caminha para um fim que não atinjo, é um Deus absurdo (…) [3]

Esta longa citação de Húmus é particularmente poderosa pela ideia de Deus/absurdo que nem Pessoa alcançou de uma maneira tão intensa. Em 1917 escrever assim era ser moderno, tal como Joyce ou outros grandes da Literatura Mundial.

Sem dúvida que Brandão não se comoveu com Orpheu, provavelmente por pertencer a uma geração mais velha. Mas Húmus é uma pedrada no charco é romance, é prosa poética, é desconstrução.

Herberto Hélder em 1967 parte da literatura de Brandão para os seus voos poéticos. E Vergílio Ferreira foi um leitor e divulgador incondicional de Brandão. Na Contra Corrente referencia que o melhor da Filosofia em Portugal se encontra nos poetas e escritores, nomeadamente Pessoa e Brandão. O escritor refere mesmo que existe com a modernidade o conceito de romance-problema, bem longe do lado de espetáculo de Balzac ou Tolstoi.

O narrador tradicional da contemporaneidade é alterado e já não existe uma concepção de história com ordenamento de episódios, mas sim o labirinto e a errância. Já não se trata de narrar uma estória, mas de problematizar.

Com Húmus desagrega se o naturalismo ainda vigente e reaprende se a filosofia e o questionar de tudo. O poeta e ensaísta David Mourão-Ferreira já o tinha dito: Raul Brandão é um precursor do Novo Romance francês.

A angústia da existência, a vertente hipnótica da morte e o absurdo acabam por preencher um imaginário de modernidade literária e mesmo filosófica. Joyce, Virginia Woolf, Franz Kafka partilham estas inquietações.

Aquando dos 150 anos do seu nascimento em Março de 2017 foi republicado o livro O Pobre de Pedir, livro póstumo com a obsessão da morte. Desde 1923 gravemente doente, Brandão conviveu com a ideia de morte de um modo desassombrado. Também as Memórias foram reeditadas em 2017, expoente máximo do memorialismo em Portugal.

Bibliografia activa

Bibliografia passiva

ANDRADE, João Pedro de, Raul Brandão – A Obra e o Homem,2ª edição, Lisboa Acontecimento. 2002

COELHO, Jacinto Prado, “O Húmus de Raul Brandão: uma obra de hoje, in A Letra e o Leitor, Lisboa: Portugália Editora, 1969

EIRAS, Pedro, Com Esquecer Fausto. A fragmentação do sujeito em Raul Brandão, Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol, Prémio PEN Clube Português de Ensaio, 2005.

FERREIRA, Vergílio, “No Limiar de um mundo, Raul Brandão, in Espaço do Invisível II, Lisboa, Arcádia, 1976

FRANCO, António Cândido, “O romance lírico de Raul Brandão”, in Poesia Oculta, Lisboa, Vega, pp. 47-51. 1996

GOULART, Rosa Maria, Romance Lírico — O Percurso de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand. 1990

LOPES, Óscar, “Raul Brandão”, in Ler e Depois. Crítica e Interpretação Literária, 1, Porto, Inova, 1990

MACHADO, Álvaro Manuel, Raul Brandão, entre o Romantismo e o Modernismo. Lisboa, ICALP, Bibl. Breve. 1984, Lisboa, Presença, 1999

VIÇOSO, Vítor, A Máscara e o Sonho- Vozes, Imagens e Símbolos na Ficção de Raul Brandão, Lisboa: Cosmos, 1999

[1] Raul Brandão, Húmus, Relógio D’ Água, 2017,pp. 11-12

[2] Raul Brandão, Húmus, Relógio d Água, 2017, p.57

[3] Raul Brandão, Húmus, idem, p. 106