VICTORIA CAMPS

(21/02/1941)

Autoria: Maria Luísa Ribeiro Ferreira

Horizonte geracional

Geração de 60

País

Espanha

Data e local de nascimento

Nasceu em Barcelona a 21 de Fevereiro de 1941

Formação e acção

Em 1964 licenciou-se em Filosofia na Universidade de Barcelona. Aí leccionou como assistente até 1967. Em 1971 ocupou o cargo de professora na Universidade Autónoma de Barcelona onde se doutorou em 1975 com uma tese intitulada “La dimensión pragmática del lenguaje”. Tornou-se catedrática dessa Universidade em 1986 e nela desempenhou o cargo de vice reitora de 1990 a1993. Em 2001 foi professora visitante do Hastings Center (Garrison, Nova York) bem como da Universidade de Chicago onde deu aulas de  Bioética. Integrou o primeiro Comité de Bioética em Espanha, desenvolvendo actividades em diferentes Comités de Ética (Comité de Bioética de España, Comités de Ética  no Hospital del Mar (1993-1996), no  Hospital Universitario Valle de Hebrón  e na  Fundación Esteve, em  Barcelona). Entre 1993 e 1996 foi Senadora do Partido Socialista da Catalunha. Ao longo da sua carreira recebeu vários prémios, como o Prémio Espasa, em 1990, pelo seu livro Virtudes Publicas, ou o Prémio Internacional Menendez Pelayo, em 2008.

 Foi também membro do Foro Babel, Senadora Independente pelo PSOE, Conselheira do Consejo del Audiovisual de Cataluña e Presidente do Comité de Bioética de Espanha.

Em 2018, foi nomeada Conselheira de Estado Permanente.

Actualmente é Professora Catedrática Emérita da Universidade de Barcelona, membro da Fundación Víctor Grifols i Lucas e membro do Conselho de Redacção de diferentes revistas – Isegoría, Segovia, Letra Internacional e Leviatán.

Linha filosófica e caracterização geral da obra

A sua obra cruza a filosofia com vários outros domínios como os estudos de género,  a pedagogia, o trabalho, a política, a cidadania, a ética, a bioética e a religião.

Estudos de Género

Censura-se por vezes as filosofias feministas por se centrarem no tema da libertação das mulheres, não apresentando teses inovadoras e limitando-se a repensar  em clave feminina  temáticas já trabalhadas por pensadores  do sexo masculino. É uma acusação que não se aplica a Victoria Camps dado que o seu pensamento nos oferece um mapa conceptual muito próprio. O individualismo e as suas ambivalências, a validade das nossas crenças, os efeitos perversos da democracia, os separatismos, a aspiração a comunidades justas, o cuidado como prescrição ética essencial, a indefinição entre público e privado, as virtudes públicas, são assuntos recorrentes na sua obra.

Camps não subscreve a aproximação exclusiva das mulheres ao cuidado, como é comum nos feminismos da diferença. E alerta-nos para os perigos desta associação pois ela  mantém as mulheres no seu estatuto ancestral. Tal como a justiça, o cuidado é uma mais valia na relação entre as pessoas. Consequentemente, todo(a)s devem atender às  suas implicações sociais e políticas. Também critica quer os feminismos da igualdade quer os da diferença. Dos primeiros ressalta a falácia universalista, que denuncia como eminentemente masculina pois impõe a todos um mesmo modelo. Dos segundos recusa a anulação das diferenças individuais pois nesta orientação as mulheres são tratadas como se constituíssem um bloco homogéneo.

.As reivindicações do actual discurso feminista deverão apelar para uma melhor qualidade de vida e pôr em causa o modelo masculino que sobrevaloriza a competição e o trabalho, não deixando espaço para uma maior humanização. Há que compatibilizar a emancipação das mulheres com uma cultura feminina e combater o complexo de culpa que se manteve durante gerações.

Ao revisitar o discurso feminista, Camps introduz-lhe novas orientações, tenta escapar ao corporativismo, estende os valores privados ao domínio público e procura transformar as virtudes privadas em valores públicos

Pedagogia

A pedagogia é um dos seus interesses primordiais, propondo alterações que combatem a mentalidade patriarcal dominante. Para Camps a educação moderna deverá obedecer ao lema “educar para a liberdade.” O que exige mudanças que atendam à sensibilidade individual, que apostem na compreensão, mais do que na obediência, e que evitem orientações punitivas. V.C. bate-se por uma educação que conduza a uma cidadania activa e comprometida, em que a ética se funde com a política e onde as virtudes assumem um papel determinante. Daí defender uma educação que cultive o respeito mútuo e a solidariedade para com os desfavorecidos. As políticas educativas não podem prescindir da tarefa de formar pessoas sob o pretexto de que deverão ser as famílias a fazê-lo. Estas têm um papel pedagógico insubstituível mas importa estabelecer uma cumplicidade entre elas e a escola. A educação deverá ser explicitamente assumida pelas famílias e pelas escolas, numa coordenação de esforços que atenda  aos meios disponíveis em ordem a combater os pseudo valores do consumo.

Trabalho

O trabalho é uma temática a que a filósofa dá grande importância, propondo alterações de modo a permitir uma maior integração das mulheres no espaço público. Este deve ter em conta o trabalho silencioso e não pago que a sociedade atribui às mulheres sem que lhes seja dado o devido valor produtivo.

Urge modificar mentalidades e agir em diferentes esferas –  o  trabalho é uma delas. O desemprego e o tendencial decréscimo de pleno emprego faz das mulheres as suas primeiras vítimas. Importa diversificar os modelos laborais, tornando-os mais próximos da realidade. A crise laboral implica uma nova distribuição dos empregos, uma vida mais repartida por outros afazeres, uma atenção aos tempos livres e aos assuntos domésticos. O trabalho parcial não pode ser considerado um flagelo pois ele é de facto inevitável numa sociedade em que o avanço tecnológico mecanizou grande número de serviços. E o “part-time”  não é um problema das mulheres, devendo ser tomado a sério enquanto prática comum da nossa época.

Política e Cidadania

A política é outro sector onde a presença feminina se faz sentir, o que provoca mutações nos hábitos, na linguagem e nas prioridades. Segundo Camps o pragmatismo, a sinceridade, a transparência, a desburocratização e a flexibilidade são maneiras de actuar mais familiares às mulheres. Por isso urge incrementar a presença das mesmas  nos centros de decisão, bem como em cargos influentes dos organismos sociais e políticos, conquistando o reconhecimento social que deles decorre.

Há que dar relevo ao privado e permitir que ele ocupe um lugar cimeiro na generalidade do corpo social e político. A vida privada e a pública não podem reger-se por regras opostas nem propor formas diferenciadas de habitar o mundo. A filósofa defende uma outra gramática do poder que consiste em impregnar a vida política de valores privados, valores esses que vai recolhendo das histórias de vida. Realisticamente, V.C. considera que as respostas aos problemas sociais do nosso tempo não serão dadas pelo Parlamento ou pelos partidos políticos mas por  movimentos de cidadãos. Por isso aplica à política valores como a conciliação, o diálogo, o pragmatismo, a solidariedade e o cuidado, considerando-os como património da humanidade.  

Há que exigir a cada cidadão o conhecimento das instituições democráticas e a capacidade de identificar a divisão dos poderes bem como  os modelos  possíveis de Estado. A alfabetização política é um requisito sem o qual dificilmente se poderá falar de cidadania. A participação na vida da cidade deve ser estimulada desde cedo, pela integração das crianças em actividades de grupo.

A actualidade política é analisada em problemas determinantes como a relação entre público e privado, as injustiças laborais, o exagero dos nacionalismos, o controle da informação, o mercado como modelo das relações humanas. O problema da Catalunha exige uma reflexão sobre o federalismo. Este é entendido como possível solução para a Espanha visto que protege as diferenças dos diversos territórios que a constituem. 

V.C. considera a democracia como uma das grandes conquistas do nosso tempo mas tem consciência dos seus problemas. Os erros do liberalismo decorreram de uma sobrevalorização das liberdades individuais; os do socialismo de uma exaltação utópica da igualdade. A sociedade deve sempre exigir o respeito dos direitos mínimos que assegurem a dignidade do ser humano. Na análise que empreende dos direitos civis e políticos, a filósofa apela ao sentido de realidade e ao senso comum, inimigos das utopias. Defensora de uma cidadania activa e empenhada, na qual os direitos civis e políticos não podem esquecer os sociais, considera a participação como  um dever de  todos os cidadãos. E interessam-lhe sobretudo as iniciativas e actividades dos pequenos grupos onde cada um pode expressar livremente as suas opiniões, à margem da disciplina dos partidos. A rigidez e clausura destes levou ao desinteresse geral, fazendo que  a política se convertesse em assunto de poucos. A indiferença e a apatia dos cidadãos comuns são efeitos perversos da democracia pois deixam para os profissionais a gestão dos poderes. Urge  perceber por que razão as pessoas se desinteressam da política. Esta,  visa o bem estar dos  indivíduos e há que lhes dar protagonismo sem que se perca de vista a justiça e o bem da comunidade. A ordem social baseia-se no reconhecimento da cooperação e a humanidade só comunitariamente pode descobrir-se.

Ética e Bioética

A ética que nos propõe critica os valores económicos e consumistas próprios do capitalismo vigente. Uma moral pública implica obrigações que a todos se impõem, norteadas pelo valor da justiça e pela defesa dos oprimidos. Há que estabelecer consensos pois aquilo  que pensamos  ser universalizável só poderá estabelecer-se por meio do diálogo esclarecido. A imposição nunca resulta. Camps critica uma ética liberal cujas fragilidades aponta, nomeadamente nos problemas e contradições derivados do individualismo exacerbado

A laicidade impõe-se nas escolhas éticas sendo importante distinguir o que deve ser aceite por todos e o que é do foro pessoal. Importa encarar todos os indivíduos como sujeitos morais activos, não se lhes podendo sonegar a possibilidade de escolha.

No domínio ético, Camps presta uma particular atenção à bioética, uma disciplina que se debruça sobre a vida, norteando-a pelos princípios da beneficência, da justiça e da autonomia. É neste contexto que surgem interrogações sobre a saúde e sobre a doença, sobre as novas  opções que se colocam a quem vive e morre num universo onde a ciência e a técnica parecem ter a última palavra.  Temos meios que nos permitem fazer escolhas e tomar posições em situações  determinantes como  o nascimento e a morte. O aborto e a eutanásia colocam-se hoje em moldes diferentes devido aos avanços técnicos. Há que os enfrentar, discutindo-os e fazendo opções. Os problemas da bioética são complexos e não podem considerar-se património de nenhuma disciplina. É urgente aproximar as ciências da natureza e as do espírito. E nem o científico nem o técnico podem desenvolver-se de costas voltadas para a ética.

Segundo Camps é vocação da bioética preocupar-se com a vida, atendendo sobretudo à qualidade da mesma. Importa encontrar um equilíbrio entre os princípios da beneficência, da justiça e da autonomia. Esta acentua a soberania individual mas por vezes esquece a interdependência e a responsabilidade. O individualismo representa a vivência do valor da liberdade mas levado ao extremo provoca consequências negativas. A ética deve salvaguardar o individualismo mas fomentar o diálogo, a participação e a cooperação.

Religião

Em Espanha Victoria Camps foi educada num contexto católico anterior ao Vaticano II. O catolicismo era a religião do Estado constituindo-se como censor dos costumes e  impondo uma moral sexual opressiva. Enquanto mulher Victoria Camps rebelou-se contra esta mentalidade opressora que inevitavelmente a marcou. E debruçou-se sobre o fenómeno religioso para melhor o compreender, com um olhar ambivalente, misto de recusa e de atracção.

Interessou-lhe o tema de uma refundação do cristianismo e a postulação de uma teologia anti-teísta e anti-transcendente, capaz de responder aos anseios dos fiéis e de se aplicar a um novo paradigma  de pensamento e de vida. Na sua perspectiva há que discutir  a possibilidade  de uma moral universal que possa responder às exigências de crentes e de não crentes. A religião e as diferentes religiões  constituem um  tema determinante das suas análises. Nelas questiona o papel das religiões monoteístas bem como as suas tendências para diferentes fundamentalismos. De igual modo analisa  o papel da secularização na possibilidade da construção de uma moral universal que aproxime crentes e não crentes. Note-se que embora se assuma como  agnóstica,  reconhece as virtudes e as vantagens da religiosidade. Por isso discute o estatuto da religião e das diferentes religiões na sociedade contemporânea, questionando a relação das mesmas com a moral. E problematiza o tema de uma moral universal, susceptível de ser aceite por crentes e não crentes, advogando um lugar para todos na sociedade contemporânea, da qual pretende traçar as exigências para uma sã convivência.

Bibliografia Passiva:

Oliveira, M.A., O lugar da ética na contemporaneidade a análise crítica de Victoria Camps, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001

Bibliografia Activa:

Los teólogos de la muerte de Dios, Barcelona, Nova Terra, 1968.

Pragmática del lenguaje y filosofía analítica, Barcelona, Ediciones 62, 1976.

La imaginación ética, Barcelona, Ariel, 1983.

Ética, retórica y política, Barcelona, Alianza Universidad, 1983.

Virtudes públicas, Barcelona, Arpa, 1990.

Paradojas del individualismo, Barcelona, Grijalbo, , 1993 (tradução portuguesa Paradoxos do Individualismo, Lisboa, Relógio D’Água, 1996).

Los valores de la educación, Madrid, Anaya, 1994.

El malestar de la vida pública, Barcelona, Grijalbo, 1994.

El siglo de las mujeres, Barcerlona, Ediciones Cátedra, 1998 (tradução portuguesa O Século das mulheres, Lisboa,  Presença, 2001).

Manual de civismo, Barcelona, Ariel,  1998.

Qué hay que enseñar a los hijos, Barcelona, Proteus, 2000.

Una vida de calidad: reflexiones sobre bioética, Barcelona, Ares y Mares, 2002.

La voluntad de vivir, Barcelona, Ariel, 2005.

Hablemos de Dios,   (com Amelia Valcárcel), Madrid, Taurus, 2007.

Educar para la ciudadania, Sevilla, Fundación Ecoem, 2007.

Creer en la educación, Barcelona, Editorial Península, 2008.

El gobierno de las emociones, Barcelona, Herder, 2011.

Breve historia de la ética, Barcelona, RBA, 2013.

Qué es el federalismo? Victoria Camps, Joan Botella y Francesc Trillas,  Madrid, Los libros de la Catarata 2016.

Elogio De La Duda, Barcelona, Arpa Editorial, 2016.

La Fragilidad de Una Ética Liberal, Barcelona, UAB, 2018.