MIGUEL REALE

(06/11/1910 – 14/04/2006)

 

Autoria: José Esteves Pereira

Horizonte geracional

GERAÇÃO DE 1940

País

Brasil

Data e local de nascimento

São Bento de Sapucaí (SP), 6 de Novembro de 1910.

Actividade desenvolvida

Descendente de italianos faz os estudos secundários do colégio paulistano Dante Alighieri e ingressa, em 1930, no bacharelado em Direito pela Faculdade de Direito de S. Paulo no Largo de São Francisco. Adere à Revolução Constitucionalista de 1932, ingressando no Batalhão Ibrahim Nobre, junto com seus colegas de curso e participa nos combates ocorridos no sul do Estado.

Seguidamente liga-se à Acção Integralista Brasileira, movimento nacionalista de extrema direita de que participaram entre outros, Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Roland Corbisier e o então padre Helder Câmara vindo a participar na fundação  da Ação Popular Sindicalista que confluiria, posteriormente, para a criação do Partido Social Progressista, que elegeu Adhemar de Barros, Governador do Estado de São Paulo. Em 1934 bacharela-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e publica O Estado Moderno, a sua primeira obra. Em 1940, em Fundamentos do Direito apresenta a teoria tridimensional do Direito com repercussão não só no Brasil mas, também, no estrangeiro. No ano seguinte concorre ao lugar de catedrático na Faculdade onde se formou e de 1942 a 1946.Integra o Conselho Administrativo do Estado paulista tendo em 1947 assumido o cargo de Secretário da Justiça do Estado de São Paulo onde cria a primeira Assessoria Técnico-Legislativa do Brasil. Voltaria a este cargo em 1963.Foi, entretanto,  nomeado Reitor da Universidade de São Paulo  em 1948.Instala os primeiros Institutos Oficiais de Ensino Superior no Interior do Estado de São Paulo e funda em 1949 o Instituto Brasileiro de Filosofia a  que presidiu até sua morte em 2006. Em 1951 chefia a delegação brasileira junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra. Em 1953 surge a primeira edição da obra Filosofia do Direito que se tornará um clássico na problematização jus-filosófica. Em 1954 funda a Sociedade Interamericana de Filosofia, da qual foi duas vezes presidente. De 1957 a 1961 chefia  a delegação brasileira aos Congressos Interamericanos de Filosofia realizados em Santiago (Chile), Washington (Estados Unidos) e Buenos Aires (Argentina).

Em 1969 é nomeado pelo Presidente da República Artur da Costa e Silva para a Comissão de Alto Nível” revisora da “Constituição” de 1967 (https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_1967). Desse trabalho resulta, em parte, o texto da Emenda Constitucional número 1 de 17 de Outubro de 1969. Nesse mesmo ano é, novamente, nomeado Reitor da USP terminando o seu mandato em 1973. Implanta a Reforma Universitária e dá corpo à estrutura definitiva dos campi da Capital e do Interior. Em 1974 torna-se membro do Conselho Federal de Cultura. É eleito para a cadeira 14 da Academia Brasileira de Letras em 1975. Em 1995  a  obra é, com a sua presença e intervenção, objecto de apreciação e debate em Portugal (Porto e Viana do Castelo (no âmbito do Colóquio Tobias Barreto) por iniciativa do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Durante o ano de 1999 profere palestras, em vários pontos do Brasil, sobre o Projeto de Código Civil e o Novo Código Civil  que veio a ser promulgado em 2003 e para cujos trabalhos Miguel Reale tinha sido comissionado. A influência na estruturação daquele instrumento normativo deu origem a que fosse chamado o Pai do Código Civil Brasileiro vigente. Morre na sua casa, em São Paulo, em 2006.

Data e local de falecimento

14 de  Abril de 2006, São Paulo (Brasil)

Lema e linha filosófica

Filosofia e Axiologia culturalistas/“Teorizar a vida e viver a teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação”

Linha filosófica e caracterização geral da obra

Com O Estado Moderno (1934) e Atualidades de um Mundo Antigo (1936) Miguel Reale começa por se interessar pela reflexão em torno da política antes de vir a dedicar o seu labor especulativo aos problemas filosóficos e particularmente o domínio da filosofia do direito. Sem uma preocupação obstinadamente sistemática o seu objectivo foi o de compreender o homem na sua integralidade abarcando temas e problemas nos limites da experiência humana. Entretanto, em fase mais madura dos seus interesses filosóficos, atenderá  ao plano da consciência e do conhecimento através de uma  radical recusa à esfera do sensível e da empiria contrastante com o seu racionalismo e platonismo axiais. Este posicionamento onto-gnoseológico é afim de uma simpatia neokantiana, que se observa até 1940, expressa num peculiar formalismo (“Construí livremente o meu platonismo próprio, que resultou kantiano, porém de um kantismo mais puro que o do próprio Kant, ou de um “kantismo ideal”. No conhecimento o espírito é sempre ativo. O intelecto cria o objecto como possibilidade de um dever ser inteligível do mundo impelindo o homem para o estabelecimento de relações coerentes expressas numa inteligibilidade universal nos domínios especulativo e prático. Há um único pensamento de que todo o humano participa e funda  a existência possível consubstanciado naquilo que se corporiza como Uno unificante, unidade do espírito puro na incondicionalidade das vontades, constelação de ideias morais identificadas com o divino de um modo imanentista e intelectualista quer  no sentido da fonte criadora e viva de todo o ímpeto real para a compreensão das coisas quer no sentido da universalidade e da espiritualização da consciência”. A densificação da sua actividade reflexiva conta, igualmente, com a sua atenção crítica à fenomenologia husserliana no apelo de ir “às coisas mesmas” necessárias a uma fundamentação da relação do pensamento e da realidade.

Em posicionamento crítico aos neo-kantianos, a sua experiência do mundo do direito alertava-o para o facto daqueles tratarem o mundo dos valores como objectos ideais.Apesar do aspecto formal das leis elas não se reduzem a fórmulas lógicas puras dado que refletem, igualmente, factos sociais de natureza histórica associando-se a valores que, embora estruturalmente atemporais, se deparam com problemas decorrentes da marcha do tempo. Nesta perspectiva se aprofundará a sua Teoria Tridimensional do Direito enquanto consideração do facto, do valor e da norma.

O pensamento de Reale está, axialmente, voltado para a compreensão do homem na sua integralidade e no reconhecimento da sua singularidade que não se reduz a uma determinação pura do Eu como também não significa que se dissolva em identidades transpessoais. O destino do homem é a criação de valores materializado na cultura. Entre o pensar e o objecto, entre o pensamento e o ser inscreve-se o valor como objecto próprio aberto á temporalidade. No cerne do pensamento realino há, portanto, o assumir de um historicismo axiológico. O tratamento do valor em Reale significa atender, ainda, à sua polaridade e à sua inexauribilidade. Não se pode falar do justo sem falar do injusto, falar do belo sem o feio. E não se pode também entender o valor como algo predeterminado. O homem está aberto a um mundo de possibilidades que vão enriquecendo a sua natureza. Há algo de futurante neste dever ser do homem. que pode, eventualmente, lembrar a vocação orteguiana. O valor implica na sua dimensão universal, portanto, uma relação com o tempo. Como afirmará em 1991, “o problema do valor não pode ser posto num projeto fora da história, pois a consciência intencional admite sempre uma projeção ou objectivação histórica”. A materialização dos valores na cultura significa que esta resulta da criação de valores objectivados ao longo do tempo a que não basta uma simples teorização. A cultura é mais do que conhecimento pois este , por si, não assegura a obrigatoriedade da ação. Por mais que o homem amplie seu conhecimento não interpõe qualquer obrigatoriedade na ação e um dos maiores desafios é justamente o aperfeiçoamento moral da humanidade e a essencial determinação do valor do bem, quer para o indivíduo quer para a sociedade.

A feição marcadamente axiológica e culturalista do pensamento de Reale permite entender o que para o pensador se apresenta como interrogações essenciais, como o espaço do seu filosofar. Ao iniciar a sua trajetória existencial os homens nascem já num dado grupo que tem valores, que possuem uma determinada cultura e que obedece a certas normas. A isto chama Reale um a-priori cultural que se distancia quer do a-priori kantiano e do estabelecimento das condições espácio temporárias e categoriais transcendentais, quer da pura relação intencional husserliana de sujeito e objecto. Para Reale há um outro a-priori que “ é o espaço em que o homem vive , o espaço social onde a sua existência se inicia e desenvolve”. A vida humana dá-se em determinada situação e é por isso que Reale insiste em que “há um terceiro a-priori a considerar, o relativo às condições existenciais da correlação sujeito/ objecto, no plano do conhecimento: é o apriori cultural trasncendentalmente inerente ao acto de conhecer. Esta a- priori cultural não deixa de decorrer da própria tradição o que o leva a afirmar que “se alguma coisa nós somos, no domínio da ciência e da filosofia, devemo-lo à tradição (…) corrente que conserva e transmite tudo quanto o mundo produziu antes de nós”. Esta acumulação existencial e histórica em função dos valores que lhe são conexos vem a objectivar-se numa dialéctica que, de modo teórico, delineia considerando um processo histórico-cultural que não se desenvolve segundo progressivas sínteses superadoras de contrários e contraditórios, mas sim através de sínteses abertas, formadas pela co-implantação de elementos que só podem ser compreendidos em sua mútua correlação sem que um deles seja reduzido ao outro. Esta teoria geral da experiência de Miguel Reale virá a servir de paradigma fecundo para inúmeras problematizações que fazem parte da sua inquietação reflexiva em que o problema da Verdade representa um dos momentos mais valiosos da obra filosófica do pensador paulista. No enquadramento da questão Miguel Reale não deixou de colocar o desafio da morte da Metafísica, perguntando se o discurso daquela não tinha sentido. O enfrentamento com o pensamento de Kant também aqui se vem a manifestar. Ao sublinhar que para o pensador prussiano a metafísica não nos dá objectos de conhecimento a que correspondam conceitos (ou, quando muito, conceitos vazios) remetendo-a para o terreno da simples conjetura, Reale interroga-se se nos é lícito desaproveitar a conjectura e desde logo desaproveita-la para a vida de cada um de nós. Conjeturar assume, no pensamento de Reale um estatuto de avaliação, de meditação sobre o que nos é dado conhecer num dado tempo.Se Kant defende, com coerência aliás, que o “ser em si” está para além da nossa capacidade intelectiva, para além do nível onto-gnoseológico pode o homem quedar-se nessa limitação de juízos problemáticos e não puros? Reale concorda que não é possível ir além dos limites impostos mas não deixa de reter e valorar o que Kant qualifica como princípios reguladores e heurísticos. Mas, em todo o caso, imperativos éticos essenciais para cada um de nós. Tudo ponderado, como expenderá em Verdade e Conjetura o pensamento conjetural dá-se em verdade de sentido ajudando a organizar a experiência e diminuir a nossa natural ansiedade de compreensão total.

Também aqui surge aprofundado o problema da relação entre ser e pensar. No que diz respeito às ciências elas delimitam o seu campo, excluindo muitas facetas do real, desde logo não nos esclarecendo sobre o caminho do homem para a realidade, em plena liberdade de ação. A limitação positivista incita à reflexão aqui contida leva-o a suscitar a dúvida sobre a total abrangência e capacidade fundamentadora que parece recorrentemente discutível e susceptível de brechas. É precisamente nestes lances que o pensamento conjetural ganha pregnância. Reale lembra a própria história do pensamento desde os primórdios helénicos. No fundo o que pensamos como incessante procura e acercamento da verdade não é mais do que exercício conjetural que apenas se tem que deter nos umbrais do Mistério, do indizível e no domínio do religioso. O apelo da poesia, que Reale igualmente exercitou, é aqui também sinal dessa intuição e abertura para o que o conhecimento não dá.

O pensamento conjectural pode ser aplicado, também,  à instância do valor e da liberdade , não do que é mas do que devia ser. O homem vive fazendo escolhas e por isso o seu ser é o seu dever ser projetando-se em conjecturas sobre a existência humana, sobre a individualidade e sobre a possibilidade da ação livre. De facto o homem se recebe a tradição também objectiva algo de si, lança-se em projecto de vida através de conjecturas.A fecundidade do pensamento conjectural, no fundo, prova uma correlação estreita entre a história e a necessidade metafísica que o racionalismo, nomeadamente o que se concretiza na técnica não satisfaz.

A conjecturalidade característica do pensamento problemático insere-se, assim, na “tentativa de pensar além daquilo que é conceitualmente verificável mesmo na linha do provável por admitir-se a necessidade de cogitar-se de algo de correlato, que venha completar o experienciado, sem perda do sentido do experienciavel que condicione a totalidade do raciocínio”.

Bibliografia activa

A) Filosofia

  • Atualidades de um mundo antigo (1936)
  • A doutrina de Kant no Brasil (1949)
  • Filosofia em São Paulo (1962)
  • Horizontes do Direito e da História (1956)
  • Introdução e Notas aos Cadernos de Filosofia de Diogo Antonio Feijó (1967)
  • Experiência e Cultura (1977)
  • Estudos de Filosofia e Ciência do Direito (1978)
  • O Homem e seus Horizontes (1980)
  • A Filosofia na Obra de Machado de Assis (1982)
  • Verdade e Conjetura (1983)
  • Introdução à Filosofia (1988)
  • O Belo e Outros Valores (1989)
  • Estudos de Filosofia Brasileira (1994)
  • Paradígmas da Cultura contemporânea (1996)

B) Filosofia do Direito

  • Fundamentos do Direito (1938)
  • Filosofia do Direito (1953)
  • Teoria Tridimensional do Direito (1968)
  • O Direito como experiência (1968)
  • Lições preliminares de Direito (1973)
  • Estudos de Filosofia e Ciência do Direito (1978)
  • Direito Natural/Direito Positivo (1984)
  • Nova fase do Direito moderno (1990)
  • Fontes e modelos do Direito (1994)

C) Ciência Política e Teoria do Estado

  • O Estado Moderno (1933)
  • A Política Burguesa (1934);
  • Formação da Política Burguesa (1935)
  • O capitalismo internacional (1935)
  • ABC do Integralismo (1935);
  • O Estado Moderno (1935);
  • Perspectivas Integralistas (1935);
  • Atualidades Brasileiras (1936).
  • Teoria do Direito e do Estado (1940)
  • Parlamentarismo brasileiro (1962)
  • Pluralismo e Liberdade (1963)
  • Expressão e Cultura; Imperativos da Revolução de Março (1965)
  • Da Revolução à Democracia (1969)
  • Política de ontem e de hoje (1978)
  • Liberdade e Democracia (1987)
  • O Estado de Direito e o conflito das ideologias (1998)

D) Direito Positivo

  • Nos Quadrantes do Direito Positivo (1960)
  • Revogação e Anulamento do Ato Administrativo (1968)
  • Direito Administrativo (1969)
  • Cem Anos de Ciência do Direito no Brasil (1993)
  • Questões de Direito (1981)
  • Teoria e Prática do Direito (1984)
  • Por uma Constituição Brasileira (1985)
  • O Projeto de Código Civil (1986)
  • Aplicações da Constituição de 1988 (1990)
  • Temas de Direito Positivo (1992)
  • Questões de Direito Público (1997)
  • Questões de Direito Privado (1997)

E) Literatura (Prosa e Poesia)

  • Poemas do Amor e do Tempo (1965)
  • Poemas da Noite (1980)
  • Figuras da Inteligência Brasileira (1984)
  • Tempo Brasileiro (1997)
  • Sonetos da Verdade (1984)
  • Vida Oculta (1990)
  • Face Oculta de Euclides da Cunha (1993)
  • Das Letras à Filosofia (1998)

Bibliografia passiva

Estudos de conjunto

AA.VV. O pensamento de Miguel Reale (Actas do IV Colóquio Tobias Barreto),Viana do Castelo, CMVC,1998.

AA.VV. Miguel Reale e o pensamento luso-brasileiro (Actas do IX Colóquio Tobias Barreto), Lisboa, IFLB,2010.

AA.VV. Miguel Reale(1910-2006), Revista Brasileira de Filosofia, Vol LV/Fasc.222(Abril,Maio, Junho-2006).

Paim, António/ Rodriguez, Ricardo Velez, Perfil Biobliográfico de  Miguel Reale/Miguel Reale, Historiador das Ideias.

https://www.ensayistas.org/filosofos/brasil/reale/introd.htm

Zilles, Urbano( org), A obra filosófica de Miguel Reale, Porto Alegre,EDIPUCRS,2000.